não, não é assim que as coisas são


fotografia de tiago


sinto-me estranha quando digo que estou sem trabalho ou emprego (como quisermos).

a maior parte das pessoas, eu incluída, assim o entenderia. outras não. nomeadamente, o tipo que interpôs uma acção para o TEDH por considerar que a proibição de trabalho forçado estava a ser violada pelo estado belga por ser obrigado a fazer o estágio para poder ser advogado, e por conseguinte a trabalhar durante um período significativo de borla. este tipo perdeu, mas para bom entendedor meia palavra basta.

toda a gente fala por aí de uma qualquer geração parva em que eu me pareço incluir, mas sobre esta geração parva penso que muito já foi dito e, para mim, o fundamental explicado.

a verdade é que se as horas de trabalho indefinidas, incluindo a ausência de três fins-de-semana num mês, me poderiam incomodar e incomodaram, foi a falta de seriedade que me fez partir de um trabalho (?) para a ausência dele. ou seja, no fundo partir de nada para nada, acrescida a desilusão de ter vestido a camisola como se fosse minha (e quanto a isso pouco posso fazer e nada a lamentar, está-me no acreditar). gosto de dar novas oportunidades e as coisas não estão fáceis no nosso país, por isso, resolvi ser razoável e discutir a questão com a pessoa para quem eu trabalhava (?). a resposta foi um é assim que as coisas são.

o é assim que as coisas são deve funcionar com muita gente e tenho de confessar que quando eu disse que, se era assim que as coisas eram, então não eram para mim, a pessoa ficou muito surpreendida. não tenho nenhum prazer (para além da confirmação de que, de facto, estaria a fazer um bom trabalho) em dizer que não só vi surpresa e estupefacção mas também a noção de dado adquirido a desfazer-se como um castelo de cartas.
poderia viver com muita coisa, dificilmente com a falta de seriedade . com acordos que são feitos, que condicionam a escolha das pessoas e que depois não são cumpridos e que ainda por cima lhes são esfregados na cara de uma forma aviltante: não pagamos não é porque não podemos mas porque é assim que as coisas são. esta premissa não pode continuar a servir sob pena de se voltar a um estado de coisas que se superou. estado de coisas para o qual aquele tipo que se dirigiu ao TEDH queria alertar.

há muito tempo, alguém que foi importante para mim disse-me que os amigos são os amigos (e eu tenho a sorte de ter amigos maravilhosos), mas que a família será sempre o último reduto, alguém que independentemente do que aconteça estará sempre lá.
na maioria dos dias, essa máxima é um pensamento constante mas algo adormecido. está dentro de nós e é óbvio, traz-nos uma segurança implícita, mas não é mais do que isso. nos dias menos bons, ganha vida. não deixa de ser surpreendente que perante aquilo que sentia, a minha família (a de sempre e aquela que só o falta ser na lei) tenha estado ao meu lado de uma forma que tenho dificuldades em definir, até porque se traduziu em posturas, necessariamente, diferentes. às vezes o apoio é confiança noutras oportunidades e admiração pelos nossos princípios e certeza quanto à força dos nossos motivos.

há pouco tempo, alguém que se torna a cada dia que passa mais importante para mim, disse-me a propósito da situação em que me encontro e das questões que levantou: «a vida é feita de momentos. o que interessa ter um conjunto de coisas? o que fica são os momentos». essa pessoa que surgiu recentemente na minha vida apoiou para a frente e não sei se imagina a importância disso. das frases sobre os momentos e de um conjunto de outras coisas. ajudou-me a reiterar a certeza que tenho há mais tempo para mim – não há um caminho lógico e pré-definido que possamos traçar a nível profissional, pelo menos se formos licenciados em determinadas áreas. temos de nos adaptar e sermos capazes de ir mais longe e de construir, de alguma forma, esse próprio caminho. essa pessoa faz-me ficar horas a falar em projectos e na forma de os pôr em prática e dá as mãos e os braços e partilha do meu esforço por um mundo melhor, ajudando a esquecer a desilusão e a olhar em frente.

e é em frente que olho. continuo a ser a mesma pessoa. continuo a querer ajudar as outras e ter uma vida simples. continuo a sonhar e isso dificilmente irá mudar.

parar de sonhar e resignarmos-nos a uma situação, cuja máxima é sintetizada num é assim que as coisas são, é meio caminho andado para nos esquecermos que estamos no mundo, acima de tudo, para sermos felizes e livres, não interessa se cantamos a que parva que eu sou ou a grândola ou a dona ligeirinha.

é um caminho perigoso, legitima o que não é justo, gera uma bola de neve que dá força a uma lógica de poder patológica tornando frases como a que se segue mais prementes:

There is no such thing as benevolent slavery. Involuntary servitude, even if tempered by humane treatment, is still slavery. Nuremberg Trial, the Pohl Trial,1947



4 comentários:

p disse...

Brava:). Só discordo duma coisa, acho que importa o que cantamos, e cantamos a dona ligeirinha:

"tanto orgulho numa só mulher moderna oh ai" :)

Cat disse...

speechless ... não há grandes dados adquiridos, talvez o único seja mesmo o de que há sempre um caminho para percorrer (de duração indeterminada), pelo que o imperativo será antes, e acima de tudo, como dizia o Solnado, fazermos o favor de ser felizes.

Gersão disse...

Fico triste pelo desfecho, mas muito orgulhoso por teres defendido com coragem as tuas convicções.

P disse...

E assim se fica mais perto de acordar Vivo todos os dias!