fotografia de
Ye Rin Mok


Um passo após o outro, desencanto com desencanto alimentado, percorres a tua memória, derivas pelas carruagens de um comboio vazio de gente. Não chegarás a casa, pressentes não ser expectável que chegues. Lês as letras no pedaço de papel que encontraste no bolso.
“Verás o ponteiro do relógio na parede. Conheço o teu nome.”
Não sabes se é uma carta, se é parte de um milagre por acontecer, se é o medo, a ganhar corpo, da resposta que te pode despojar de ti próprio. Desconheces se aquelas letras são a convicção de que um disparo da tua alma pode rasgar o silêncio da noite, iluminar um céu que não queres ver, destruir o metrónomo selvagem das rodas nos carris em curva larga. Se for uma carta e se for para ti, sentir-te-ás tentado a pensar que falhaste, talvez. Não te lembras de como foste ter ali, de como chegaste a ti próprio, estando tão escuro. Nem sabes o teu nome e jurarias que nunca o soubeste. E, se aquele papel fala verdade, alguém está à tua espera, alguém que te conhece ou espera algo de ti aguarda que chegues ao fim dessa quase-noite. Senta-se esse alguém num banco de estação. A tinta velha do banco tende a colar-se à roupa dos que nele descansam, ou esperam. Levantar-se-á, esse alguém, com a calma de quem sabe que as profecias se cumprem. Ouvirás o teu nome murmurado ao ouvido e sentirás que é o mais próximo de Casa que terás. E verás tudo, nessa casa, como se tudo te fosse familiar. Percorrerás, com o mesmo método com que erras pela tua memória, as paredes de cor suave, as enigmáticas andorinhas de louça a esvoaçar perto do tecto, a tinta da parede a colar-se às andorinhas se elas quisessem sair, o armário com portas de vidro de onde miniaturas de sentinelas vigiam nem sabes bem o quê.
Nunca soubeste nada sobre as viagens que empreendes. Sei, e digo-te, que o nunca é demasiado mas és tu.
Na parede, o relógio ficará parado porque o medo se vai dissipando, porque abres a janela, porque os relógios param e o tempo também, aqui e no fim do mundo, seja este onde for.

Baudolino


P.S. - Este texto é da autoria de um convidado
, vencedor entre milhares, escolhido a dedo para dar outra cor (verdocas, aparentemente) a esta casa. Outros convidados se seguirão, em podendo e em querendo. Ao Baudolino, grazie mille e muchas gracias. É uma honra.

P.S.2. - A fotografia foi escolhida pela equipa residente sem conhecimento prévio do autor, e é da autoria da internet.


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